quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Não é tão mórbido quanto parece.

Tem dia que dá vontade de não existir. Não é algo como querer morrer. Não é tão mórbido quanto parece. É só vontade de suspender a existência por um dia. De não querer saber se existe, de não pensar sobre o que pensa, não ser o que é - de ser nada, na verdade. Tem dia que dá vontade de não saber se existe no mundo. Ou como se existe no mundo. Um modo suspenso de vida, sem consciência de si. Um dia em que não existe a contração da vida, nem a dúvida, nem a certeza, nem algo que se pareça consigo mesmo.

Eu não queria morrer por um dia, não é disso que se trata. Eu queria não existir por um dia. Algo que não se sabe. Seria parecido com deixar em suspenso. Algo como standby da TV. Não sei - eu voltaria amanhã, mas hoje eu só queria estar lá/aqui, sem saber que só estou.

Eu queria me desligar, mas sem susto, sem drama, sem morte. Só desligar, e depois ligar, reiniciar, funcionando de acordo com as configurações de fábrica - mas não que eu quisesse ser uma máquina - não! Queria continuar sendo gente, mas desligável. Em complemento a analogia, eu diria que tem dia que faltam 2% para bateria acabar - para que a loucura se instale por completo, só dois porcento, mas que não acabam nunca, sempre uma promessa de que tá acabando. Mas, mais fácil seria se eu pudesse só desligar, colocar na tomada, e esperar o amanhã. 

Existir é cansativo por demais, mas morrer é um exagero.

domingo, 11 de outubro de 2020

em espera.

Ser grávida é difícil e solitário - esse tempo em que não somos o que somos, ou ao menos, não apenas o que somos. 
Nenhuma mãe, que já não seja grávida, lembra de te dizer (ao narrar a sua própria gravidez) que ser grávida é uma contração filosófica absurda e constante. É um estado que parece infinito e permanente. É uma angústia crônica. 
Você acorda pensando se todas as partes daquele ser estão se formando como deveriam. Você dorme pensando se essa pessoa vai ser feliz no mundo. Passa de um não-acontecido para um futuro absoluto em segundos.
Você deseja a todo instante que não falhe.
É uma angústia imensa. Uma espera interminável.
Você não sabe nada do que está acontecendo lá dentro. Você até imagina, mas não sabe.
Ninguém te fala que você suspende tudo pra pensar nisso.
É um suspense.
Um sofrimento total que dói profundamente - a esperança.
Do nada, a angústia se torna amor puro - intranquilo, desassossegado. Será que isso continua pra toda vida?
É difícil pra caralho ser grávida. 
As fotos, porém, estão ótimas.


quarta-feira, 15 de julho de 2020

Cheia

Minhas narinas agora são impregnadas de todos os cheiros que o mundo produz. Nenhum cheiro me escapa. Não passo ilesa nem pelo perfume das borboletas crentes. Me sinto como um cão entediado, uma cadela entediada, na verdade, sejamos justas.
Eu não sinto mais prazer nos deleites corriqueiros, um vazio de bocas. Tudo é monótono e angustiante. Será que devo? Não devo. Não ouso.
Na verdade não existe poesia, nunca existiu. Não escrevo cartas para Simone ou Madalena. Não escrevo para ninguém - escrevo para ninguém.
O que acontece entre os dedos e as máquinas é a vida que não se resolve, e agora tenho narinas aguçadas demais para sorrir. Como posso sorrir se sinto o cheiro do plástico que estala quando pressiono as teclas? Como posso sorrir se o cheiro dos seus braços me dá vontade de morrer?
Eu não sorrio porque o meu sorriso cheira também. E não tem mais espaço para cheiro algum.
Ainda não sei dizer sobre a nova vida que tenho, ela existe. Preservemos os mistérios, o tempo não é mais o que define. Eu sinto o cheiro do tempo, desse tempo.
Estou literalmente cheia.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

No buraco.

Foi assim que as baratas encontraram a forma perfeita para existir sendo quem são. Quantos milhares de anos, milhões até, forjaram sua casca brilhosa, marrom- escuro, seu tamanho pequeno, mas notável. Suas asas, por vezes, falhas, mas assustadoras. Sua inércia conveniente. Suas tocas na escuridão. Quantos milhões de anos foram necessários à barata, para que ela evoluísse para ser o que ela é.
Precisamos aprender com as baratas que não temos que ser grandes e venenosos para sermos imbatíveis. Nem límpidos, nem limpos. Podemos nos entocar. Podemos sair correndo quando as luzes acenderem. Podemos assustar com a nossa feiura simples. Não a barata de kafka. A barata do quarto, que perturba o sono. O que elas podem nos dizer depois da bomba de Hiroshima, ou Chernobyl?
Elas aprenderam a ser assim? Nem grande, nem venenosa. Só feia, pretensiosa e sacana.
Aprenderemos com as baratas, que vivem anos escondidas no buraco do batente da porta, e ali constrói seu império, e ali procria, e ali descansa.
Aprenderemos com as baratas.
As baratas, com suas cascas reluzentes, nos ensinarão sobre coragem.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

estado de utopia


Amanhecemos, todos os dias desde o novo, num desassossego atontado de alegria
Nunca haverá um depois novinho em folha, essa é a verdade
No entanto, as mariposas não são mais suicidas
Passamos a acreditar no adoecimento dos gansos selvagens
Hoje, depois de esperar os pequenos movimentos noturnos
Podemos enxergar o crescimento das plantas, no flagrante.
Com esses novos olhos que o novo mundo moldou
Nunca mais um menino morreu de fome ou de falta de sonho
Salvam-se os gansos, os meninos e as mariposas
Se não fosse assim, nos arrependeríamos de haver uma aurora
Os poetas e toda gente continuam seus trabalhamentos
E não é mais proibido pisar a grama, e nem criar expectativas.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

as vespas roubaram minha aurora

Já tinham nós avisado para reparar no mundo pequeno dos insetos. Agora, as vespas gigantes querem a justiça.
Como a angustia que chega por não sabermos se nossos esforços vão dar conta desse novo apocalipse que se apresenta. Embora estejamos ensaiando dias melhores, as vespas nos lembram que não podemos fazer surgir o outro dia assim. Um dia é um vislumbre de uma nova aurora, o outro é de vislumbre de um fim possível.
As vespas gigantes nos rondam, e podem arrancar nossas cabeças. Estamos atentos para ver em que momento do dia podemos abrir o novo ou velho.
Tristes. Estamos tristes. Nos arrepiamos pela sombra do presente. Estamos tristes e cansados. E fugimos das vespas, e fugimos do vírus e fugimos de nós.
Será que as vespas e os vírus acreditam em deus?

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Relatório sobre o abrimento da aurora

Ontem abrimos uma aurora. Não abrimos com pedra, ferro e aço.
Para sairmos do velho fim de mundo tivemos que obter conhecimentos outros. Após testes, constatamos que as ferramentas antigas não mais nos serviam. Os mesquinhos já não puderam aumentar suas panças para que pudéssemos sair desse fim de mundo.
Tivemos que nos atentar ao que diziam as bactérias (que se escondem no profundo oceano), pra saber como se esconderam no ato do naufrágio, até que tudo passasse. Além disso, não era mais possível consultar os manuais de salvamentos, e tivemos que buscar as diretrizes noutro lugar. Tivemos ainda, antes de sairmos do velho fim do mundo, que construir outro fim do mundo, e só então estávamos aptos pra um novo começo de mundo.
Descobrimos que: os melhores luscos-fuscos não se escondiam às nossas vistas; os abraços são dados usando todos os músculos, até os que movem as pestanas; as lagartas morrem quando nascem; os cachorros possuem melhores amigos que não são humanos; os gatos gostam de carinho demorado; os meninos sabem sonhar na rua; as mães se cansam; os pés sabem pisar a grama sem culpa e outros desconhecimentos que só o fim do mundo certo pôde nos proporcionar.
É certo, que em algum momento daquele fim de mundo, achávamos que não havia mais nada que pudesse ser feito para abrir um novo. E depois de tentarmos alicates, armas de fogo, lâmina de espada, força bruta, furadeiras gigantes e etc., só conseguimos fissurar a fina membrana que nos separava deste novo mundo, com a ferramenta dos poetas. Alguém, no meio da iminência obscura de um fim melancólico, se lembrou: podemos tentar com o abridor de amanhecer!
Estava lá, o hoje, do jeito que se criou. Quando a fissura foi se alargando, e começamos a espiar pela brecha o novo, todas as palavras tinham sido libertas para criar seu destino. Que alívio foi ver que toda gente sabe criar o mundo com palavra!
Hoje é o primeiro dia do novo, que ainda está sendo palavriado, e vendo como andam os processos, acredito que teremos sucesso. Nesse primeiro dia já inventamos uma palavra para designar a imagem de um anoitecer tranquilo. E também estamos trabalhando na palavra certa pra descrever o êxtase dos reencontros, mas ela virá. A dificuldade agora é inventar uma palavra que possa soterrar o velho normal e geminar o mundo com plantas alegrinhas. Cada coisa no seu tempo.
E sobre o tempo, toda gente está achando que as medidas antigas não servem mais. Estudando ensaios, nos foi útil a observação em perspectiva: as lesmas e as tartarugas são bem rápidas se comparadas a formação das rochas e ribanceiras, é um aspecto polêmico, mas poder ser útil. O ser humano vive uma eternidade quando contemporâneo às moscas. Mas as moscas vivem uma eternidade se comparadas aos vírus sem corpo. Mas em compensação, os vírus quando encontram um corpo, vivem uma eternidade se defronte à saudade. São estudos de tempo que agora, no primeiro dia do novo mundo, nos ajudam a criar réguas para as mudanças que estão porvir.
E como é importante saber a hora de interromper, por enquanto, os estudos que são inúteis aos mesquinhos, deixo aqui uma certeza escrita na areia eterna das praias que agora brilham mais do que anteontem - os trabalhamentos dos poetas surtiram efeito.