terça-feira, 28 de abril de 2020

Bem perto das unhas tem uma carne.

Em algum momento da tarde, nunca exato, mas quase sempre, meu corpo abre uma fenda, e eu entro num vórtice.
Nele há uma inquietude silenciosa e desesperadora, como se não houvesse palavra, nem ar, nem cócegas, nem nada. Um nada todo. Nas tardes, nenhuma ocupação é suficiente pra distrair os ocupantes dessa terra do nada. 
Um sufoco. Um respiro fundo, puxando todo ar da terra do nada, que não vem. 
Os dedos procuram cavar, cavar. Cavam a si mesmos freneticamente, pra chegar no limite de uma carne na terra do nada.
Fazem tanto, tão forte, que os braços se cansam, não respondem. Mas é um vício, por isso incontrolável. Os braços se cansam. Os ombros se contorcem, com os gatos, em busca de um alívio na terra do nada. repetidamente se contorcem, o alivio passa bem rápido. Vira vício, como tudo na terra do nada. 

Nas tardes, eu transformo meninos em heróis, e penso nas suas infinitas qualidades. Na sua obsessão pelas coisas pequenas, admirável. Os meninos se entretêm com as coisinhas pequenas. Não sei se o fazem porque sabem, mas se parecem com os poetas. Os meninos se dedicam aos seus ganhos pequenos, em jogos que brilham. Se dedicam a decifrar os códigos de cadeados, por longos minutos, horas.
Eu acabo sendo mãe-mulher quando dedico aos meninos essas qualidades que eles não tem. E se, de verdade, as têm, não sabem. Como os poetas. Orgulhosa pelos feitos dos meninos. Tão distraídos do mundo que dói.

Essa terra do nada, assim como acontece, vai embora. Os dedos estão cansados, os braços não se aguentam carregando pratos, os ombros pedem que eu pare. A terra do nada vai embora. Quase sempre pela mesma hora. Eu volto para essa terra, não me orgulho mais dos meninos.

Meu corpo fecha a fenda. Sou mulher de novo.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Bicho

Gostaria de escrever um poema sobre as dores de um mundo que não sei se morre ou se nasce.
Mas preciso, e devo, escrever um poema sobre os meus cabelos que caem, desesperadamente, impedindo a água de seguir seu rumo ao nada.
E em meio a tanto desespero eu me agarro neles, na confiança de que voltem à minha cabeça infantil, mas caduca.
Eu não quero perdê-los, não tão cedo. Eu já sou uma anciã, mas sou criança no mundo.
E embora as dores de um mundo que agoniza, perturbem meu sono leve, eu não posso parar de pensar nos cabelos que perdi, desde a última vez que tentei agarrá-los. Eles caem.
E de todas as dores do mundo que eu vejo, os cabelos e a morte agora competem entre si. Os cabelos e a morte, e também as mariposas, que já não me fazem rir, e nem querer escrever. Agora elas são um retrato triste de gente morta.
Os cabelos se enrolam nos dedos, nas roupas, nas maçãs, na fumaça do meu cigarro. Os cabelos entram na minha boca, e me impedem de falar. Eles se amontoam no canto do quarto a cada vento que entra pela porta, que rebate com o vento que entra pela janela, e assim eles se juntam todos, bem no canto do quarto, formando uma sombra assustadora, de um bicho que poder estar vivo ou morto. Os cabelos que caem me assustam, porque me lembram da morte.
Se juntasse todos os cabelos que caíram num prazo de 40 dias, posso não estar certa desse prazo, eu teria uma pilha de mortos. Os cabelos e a morte agora são a mesma reflexão. Eu penso em um, me encontro noutro. Como uma doença, gasto tempo, aquele que não mais me falta, recolhendo cada um deles e fazendo um emaranhado de fios que não vivem mais por ordem da minha cabeça. Patológico - não há como evitar. Vê-los, assim, soltos. Deixá-los a própria sorte. Não sou tão cruel. Pois bem, recolho, cada um, quando sou surpreendida. Alguns eu até sentencio: está quase por cair, então puxo eu! Pra acabar com essa agonia.
Se me dissessem: terás que perder todos os cabelos, não de uma só vez, mas a cada dia, perderás todos os cabelos, ao fim de 40 dias! Eu jamais aceitaria. Não. Porque prefiro que se vão logo de uma vez. Mas, assim: espera! Nada te vai acontecer durante 40 dias. Também não aceitaria.
A lentidão da queda, a iminência da queda e por fim a queda, e seus resquícios. Tudo isso mata. Vai matando.
Eu já não os toco. Os cabelos, e a morte.