domingo, 11 de outubro de 2020

em espera.

Ser grávida é difícil e solitário - esse tempo em que não somos o que somos, ou ao menos, não apenas o que somos. 
Nenhuma mãe, que já não seja grávida, lembra de te dizer (ao narrar a sua própria gravidez) que ser grávida é uma contração filosófica absurda e constante. É um estado que parece infinito e permanente. É uma angústia crônica. 
Você acorda pensando se todas as partes daquele ser estão se formando como deveriam. Você dorme pensando se essa pessoa vai ser feliz no mundo. Passa de um não-acontecido para um futuro absoluto em segundos.
Você deseja a todo instante que não falhe.
É uma angústia imensa. Uma espera interminável.
Você não sabe nada do que está acontecendo lá dentro. Você até imagina, mas não sabe.
Ninguém te fala que você suspende tudo pra pensar nisso.
É um suspense.
Um sofrimento total que dói profundamente - a esperança.
Do nada, a angústia se torna amor puro - intranquilo, desassossegado. Será que isso continua pra toda vida?
É difícil pra caralho ser grávida. 
As fotos, porém, estão ótimas.


quarta-feira, 15 de julho de 2020

Cheia

Minhas narinas agora são impregnadas de todos os cheiros que o mundo produz. Nenhum cheiro me escapa. Não passo ilesa nem pelo perfume das borboletas crentes. Me sinto como um cão entediado, uma cadela entediada, na verdade, sejamos justas.
Eu não sinto mais prazer nos deleites corriqueiros, um vazio de bocas. Tudo é monótono e angustiante. Será que devo? Não devo. Não ouso.
Na verdade não existe poesia, nunca existiu. Não escrevo cartas para Simone ou Madalena. Não escrevo para ninguém - escrevo para ninguém.
O que acontece entre os dedos e as máquinas é a vida que não se resolve, e agora tenho narinas aguçadas demais para sorrir. Como posso sorrir se sinto o cheiro do plástico que estala quando pressiono as teclas? Como posso sorrir se o cheiro dos seus braços me dá vontade de morrer?
Eu não sorrio porque o meu sorriso cheira também. E não tem mais espaço para cheiro algum.
Ainda não sei dizer sobre a nova vida que tenho, ela existe. Preservemos os mistérios, o tempo não é mais o que define. Eu sinto o cheiro do tempo, desse tempo.
Estou literalmente cheia.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

No buraco.

Foi assim que as baratas encontraram a forma perfeita para existir sendo quem são. Quantos milhares de anos, milhões até, forjaram sua casca brilhosa, marrom- escuro, seu tamanho pequeno, mas notável. Suas asas, por vezes, falhas, mas assustadoras. Sua inércia conveniente. Suas tocas na escuridão. Quantos milhões de anos foram necessários à barata, para que ela evoluísse para ser o que ela é.
Precisamos aprender com as baratas que não temos que ser grandes e venenosos para sermos imbatíveis. Nem límpidos, nem limpos. Podemos nos entocar. Podemos sair correndo quando as luzes acenderem. Podemos assustar com a nossa feiura simples. Não a barata de kafka. A barata do quarto, que perturba o sono. O que elas podem nos dizer depois da bomba de Hiroshima, ou Chernobyl?
Elas aprenderam a ser assim? Nem grande, nem venenosa. Só feia, pretensiosa e sacana.
Aprenderemos com as baratas, que vivem anos escondidas no buraco do batente da porta, e ali constrói seu império, e ali procria, e ali descansa.
Aprenderemos com as baratas.
As baratas, com suas cascas reluzentes, nos ensinarão sobre coragem.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

estado de utopia


Amanhecemos, todos os dias desde o novo, num desassossego atontado de alegria
Nunca haverá um depois novinho em folha, essa é a verdade
No entanto, as mariposas não são mais suicidas
Passamos a acreditar no adoecimento dos gansos selvagens
Hoje, depois de esperar os pequenos movimentos noturnos
Podemos enxergar o crescimento das plantas, no flagrante.
Com esses novos olhos que o novo mundo moldou
Nunca mais um menino morreu de fome ou de falta de sonho
Salvam-se os gansos, os meninos e as mariposas
Se não fosse assim, nos arrependeríamos de haver uma aurora
Os poetas e toda gente continuam seus trabalhamentos
E não é mais proibido pisar a grama, e nem criar expectativas.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

as vespas roubaram minha aurora

Já tinham nós avisado para reparar no mundo pequeno dos insetos. Agora, as vespas gigantes querem a justiça.
Como a angustia que chega por não sabermos se nossos esforços vão dar conta desse novo apocalipse que se apresenta. Embora estejamos ensaiando dias melhores, as vespas nos lembram que não podemos fazer surgir o outro dia assim. Um dia é um vislumbre de uma nova aurora, o outro é de vislumbre de um fim possível.
As vespas gigantes nos rondam, e podem arrancar nossas cabeças. Estamos atentos para ver em que momento do dia podemos abrir o novo ou velho.
Tristes. Estamos tristes. Nos arrepiamos pela sombra do presente. Estamos tristes e cansados. E fugimos das vespas, e fugimos do vírus e fugimos de nós.
Será que as vespas e os vírus acreditam em deus?

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Relatório sobre o abrimento da aurora

Ontem abrimos uma aurora. Não abrimos com pedra, ferro e aço.
Para sairmos do velho fim de mundo tivemos que obter conhecimentos outros. Após testes, constatamos que as ferramentas antigas não mais nos serviam. Os mesquinhos já não puderam aumentar suas panças para que pudéssemos sair desse fim de mundo.
Tivemos que nos atentar ao que diziam as bactérias (que se escondem no profundo oceano), pra saber como se esconderam no ato do naufrágio, até que tudo passasse. Além disso, não era mais possível consultar os manuais de salvamentos, e tivemos que buscar as diretrizes noutro lugar. Tivemos ainda, antes de sairmos do velho fim do mundo, que construir outro fim do mundo, e só então estávamos aptos pra um novo começo de mundo.
Descobrimos que: os melhores luscos-fuscos não se escondiam às nossas vistas; os abraços são dados usando todos os músculos, até os que movem as pestanas; as lagartas morrem quando nascem; os cachorros possuem melhores amigos que não são humanos; os gatos gostam de carinho demorado; os meninos sabem sonhar na rua; as mães se cansam; os pés sabem pisar a grama sem culpa e outros desconhecimentos que só o fim do mundo certo pôde nos proporcionar.
É certo, que em algum momento daquele fim de mundo, achávamos que não havia mais nada que pudesse ser feito para abrir um novo. E depois de tentarmos alicates, armas de fogo, lâmina de espada, força bruta, furadeiras gigantes e etc., só conseguimos fissurar a fina membrana que nos separava deste novo mundo, com a ferramenta dos poetas. Alguém, no meio da iminência obscura de um fim melancólico, se lembrou: podemos tentar com o abridor de amanhecer!
Estava lá, o hoje, do jeito que se criou. Quando a fissura foi se alargando, e começamos a espiar pela brecha o novo, todas as palavras tinham sido libertas para criar seu destino. Que alívio foi ver que toda gente sabe criar o mundo com palavra!
Hoje é o primeiro dia do novo, que ainda está sendo palavriado, e vendo como andam os processos, acredito que teremos sucesso. Nesse primeiro dia já inventamos uma palavra para designar a imagem de um anoitecer tranquilo. E também estamos trabalhando na palavra certa pra descrever o êxtase dos reencontros, mas ela virá. A dificuldade agora é inventar uma palavra que possa soterrar o velho normal e geminar o mundo com plantas alegrinhas. Cada coisa no seu tempo.
E sobre o tempo, toda gente está achando que as medidas antigas não servem mais. Estudando ensaios, nos foi útil a observação em perspectiva: as lesmas e as tartarugas são bem rápidas se comparadas a formação das rochas e ribanceiras, é um aspecto polêmico, mas poder ser útil. O ser humano vive uma eternidade quando contemporâneo às moscas. Mas as moscas vivem uma eternidade se comparadas aos vírus sem corpo. Mas em compensação, os vírus quando encontram um corpo, vivem uma eternidade se defronte à saudade. São estudos de tempo que agora, no primeiro dia do novo mundo, nos ajudam a criar réguas para as mudanças que estão porvir.
E como é importante saber a hora de interromper, por enquanto, os estudos que são inúteis aos mesquinhos, deixo aqui uma certeza escrita na areia eterna das praias que agora brilham mais do que anteontem - os trabalhamentos dos poetas surtiram efeito.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Aos poetas ruins, roteiristas e artistas plásticos - Convocatória de descriação urgente

Precisamos convocar urgentemente uma grande assembleia com todos os poetas do mundo, menos os que são úteis, os roteiristas de cinema, os artistas plásticos, porque não há mais tempo a perder, e é necessário descriar esse fim de mundo uníssono e já batido entre os humanos, que não tiveram a dádiva da ignorância.
Um bom fim de mundo que se preze não pode, jamais, deixar de considerar as senhoras com suas sacolas, transeuntes alegres, que gozam da, desconcertante, capacidade de ignorar os fins de mundo catastróficos. E como não considerar os homens velhos que arrastam suas barrigas pontudas, quase grávidos, para o conforto de todo o universo da praça? Um bom fim de mundo que se preze, não pode se contentar com as cidades vazias, porque essa ficção é, no limite, uma glória.
Convocaremos por setor, a saber: a) os poetas que não falam de amor, porque são inúteis então podem contribuir para criação de novas palavras para as disintereçâncias que um novo fim de mundo deve causar aos mais apegados; b) roteiristas de cinema que possam criar uma ficção que não obedeça à curva, cuja história não nos faça acreditar no melhor, mas também, que não nos deixe a própria sorte; c) artistas plásticos que, com toda a abstração necessária para se chegar na imagem errada, criem uma cenografia, onde participam do fim do mundo, os seres pequeninos, tais como: as formigas, as baratas, os maruins...aqui cabe a criação de uma cláusula: não serão permitidas em nenhuma hipótese cenográfica a aparição de mariposas, é certo que esse item fica confuso, mas exemplificarei: onde e como se escondem do novo fim do mundo as lêndeas? Como se comportarão as espadas-de-são-jorge que crescem em algum pedaço de chão? Também é certo, que no tocante aos comportamentos, setores A e C precisam trabalhar em conjunto.
É importante salientar aos poetas, por serem em essência seres ingênuos, que não será permitido o estabelecimento de imagens extremas. Entendam, o que estamos tentando fazer aqui é criar uma justa forma que caiba num novo fim de mundo - não se percam nas métricas! É estritamente necessário que cada setor entenda sua função de descriação, uma atividade muito minuciosa, que exigirá de todos o comprometimento proporcional. 
Um prazo deverá ser estipulado para a conclusão dos trabalhos, e aqui sugiro que pensemos nos critérios, e talvez, os parâmetros: a) nem tão rápido como o caminhar das lesmas, afinal temos pressa, e o novo fim do mundo precisa entrar em cartaz antes que se cumpram as profecias; b) nem tão devagar quanto o movimento das montanhas, tendo em vista que a cada translação uma pedra rola a ribanceira, e consequentemente, depois de muito tempo, criam penhascos e neles colocamos tudo a perder.
Como último ponto, por hora - é terminantemente proibida a crianção de consensos. 
Esperamos que com esses encaminhamentos as nossas descriações aumentem bem. 

Nota: para o bem desse delírio houve a necessidade de consultar o manual máximo de desconhecimentos - "Meu quintal é maior que o mundo: Antologia".


terça-feira, 28 de abril de 2020

Bem perto das unhas tem uma carne.

Em algum momento da tarde, nunca exato, mas quase sempre, meu corpo abre uma fenda, e eu entro num vórtice.
Nele há uma inquietude silenciosa e desesperadora, como se não houvesse palavra, nem ar, nem cócegas, nem nada. Um nada todo. Nas tardes, nenhuma ocupação é suficiente pra distrair os ocupantes dessa terra do nada. 
Um sufoco. Um respiro fundo, puxando todo ar da terra do nada, que não vem. 
Os dedos procuram cavar, cavar. Cavam a si mesmos freneticamente, pra chegar no limite de uma carne na terra do nada.
Fazem tanto, tão forte, que os braços se cansam, não respondem. Mas é um vício, por isso incontrolável. Os braços se cansam. Os ombros se contorcem, com os gatos, em busca de um alívio na terra do nada. repetidamente se contorcem, o alivio passa bem rápido. Vira vício, como tudo na terra do nada. 

Nas tardes, eu transformo meninos em heróis, e penso nas suas infinitas qualidades. Na sua obsessão pelas coisas pequenas, admirável. Os meninos se entretêm com as coisinhas pequenas. Não sei se o fazem porque sabem, mas se parecem com os poetas. Os meninos se dedicam aos seus ganhos pequenos, em jogos que brilham. Se dedicam a decifrar os códigos de cadeados, por longos minutos, horas.
Eu acabo sendo mãe-mulher quando dedico aos meninos essas qualidades que eles não tem. E se, de verdade, as têm, não sabem. Como os poetas. Orgulhosa pelos feitos dos meninos. Tão distraídos do mundo que dói.

Essa terra do nada, assim como acontece, vai embora. Os dedos estão cansados, os braços não se aguentam carregando pratos, os ombros pedem que eu pare. A terra do nada vai embora. Quase sempre pela mesma hora. Eu volto para essa terra, não me orgulho mais dos meninos.

Meu corpo fecha a fenda. Sou mulher de novo.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Bicho

Gostaria de escrever um poema sobre as dores de um mundo que não sei se morre ou se nasce.
Mas preciso, e devo, escrever um poema sobre os meus cabelos que caem, desesperadamente, impedindo a água de seguir seu rumo ao nada.
E em meio a tanto desespero eu me agarro neles, na confiança de que voltem à minha cabeça infantil, mas caduca.
Eu não quero perdê-los, não tão cedo. Eu já sou uma anciã, mas sou criança no mundo.
E embora as dores de um mundo que agoniza, perturbem meu sono leve, eu não posso parar de pensar nos cabelos que perdi, desde a última vez que tentei agarrá-los. Eles caem.
E de todas as dores do mundo que eu vejo, os cabelos e a morte agora competem entre si. Os cabelos e a morte, e também as mariposas, que já não me fazem rir, e nem querer escrever. Agora elas são um retrato triste de gente morta.
Os cabelos se enrolam nos dedos, nas roupas, nas maçãs, na fumaça do meu cigarro. Os cabelos entram na minha boca, e me impedem de falar. Eles se amontoam no canto do quarto a cada vento que entra pela porta, que rebate com o vento que entra pela janela, e assim eles se juntam todos, bem no canto do quarto, formando uma sombra assustadora, de um bicho que poder estar vivo ou morto. Os cabelos que caem me assustam, porque me lembram da morte.
Se juntasse todos os cabelos que caíram num prazo de 40 dias, posso não estar certa desse prazo, eu teria uma pilha de mortos. Os cabelos e a morte agora são a mesma reflexão. Eu penso em um, me encontro noutro. Como uma doença, gasto tempo, aquele que não mais me falta, recolhendo cada um deles e fazendo um emaranhado de fios que não vivem mais por ordem da minha cabeça. Patológico - não há como evitar. Vê-los, assim, soltos. Deixá-los a própria sorte. Não sou tão cruel. Pois bem, recolho, cada um, quando sou surpreendida. Alguns eu até sentencio: está quase por cair, então puxo eu! Pra acabar com essa agonia.
Se me dissessem: terás que perder todos os cabelos, não de uma só vez, mas a cada dia, perderás todos os cabelos, ao fim de 40 dias! Eu jamais aceitaria. Não. Porque prefiro que se vão logo de uma vez. Mas, assim: espera! Nada te vai acontecer durante 40 dias. Também não aceitaria.
A lentidão da queda, a iminência da queda e por fim a queda, e seus resquícios. Tudo isso mata. Vai matando.
Eu já não os toco. Os cabelos, e a morte.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Observações sobre a natureza doméstica


Barulhos perdoáveis

As mariposas não entendem seu destino. Se debatem contra luz, porque amam. Se elas ouvissem o que ouço, largariam esse relacionamento abusivo.

Safas

As plantas são as mais rápidas em saber das coisas. O dia passa, bem devagar, mas as plantas esticam ainda mais o tempo. Elas fogem do flagrante.

Ocupantes

As borboletas voltaram. Elas agora invadem minha casa, invadem a paisagem. Fiquei pensando se voltaram por causa da calmaria ingênua das ruas. Do silêncio, que agora é intenso. Ou se voltaram pra trazer um segredo, aquele sobre transformar-se.

Súbitos

Enquanto pensava uma carta de amor, ou de ressentimento, percebi, num repente, que escrevê-la seria completamente desnecessário. Sem nenhum sentido aparente, uma lesma deslizava lenta na parede diante dos meus olhos.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Lutos.

Vê. Não somos gentis.
Na ausência total de sentido pras coisas úteis, percebe-se um vazio imenso, que preenche todas as pequenezas que nos invadem na correnteza das coisas. A verdade é que partimos, inevitavelmente, de lugares distintos. A pequeneza das coisas se traduz em valor, negociável, de tempo e energia. A correnteza da vida não é sinuosa como a dos rios, ou melhor, ela foi, mas botaram cimento. A correnteza das coisas não nos permite, talvez, contrariando toda filosofia, ser diferente do que somos agora. Só os astros.
Todos os cadáveres estão na sala, fedendo.
Empacotando seus corpos, o que sobrou deles, eu choro, um por dia. Eu os choro agora, porque só agora posso fazê-lo. Mas tenho de fazê-lo.
A correnteza é implacável.
Embora os lutos venham, os dias de sol e incerteza, me acalmam. Porque não importa o que eu deixe de fazer. A calma invade e eu choro em paz.
Faço velórios silenciosos, que se confundem com as coisas do dia. Ninguém sabe, mas eu estou de luto. Rezo pelos mortos, e sei que agora eles podem viver tranquilos. Mas eles fedem. Eu acelero seus enterros, mas não quero chorá-los com pressa. Momento propício este, que me deixa chorar com calma.
Eu vou enterrá-los, todos. Para que eu possa encontrá-los em alguma parte sem constrangimentos.
Eu me comprometo com o futuro, a partir disso, quando ele vier.



quarta-feira, 18 de março de 2020

A História, que não serve pra nada, do fim do mundo.

O futuro chegou.
Ele não é como falavam os otimistas. Nem como falavam os pessimistas. O futuro pertence a quem não tem fé, nem piedade. O futuro chegou, e ele é pior do que nos filmes de ficção.
No ano de 2020...pausa aqui, essa parte é importante, porque é agora que faço uma ode a esse velho hábito, que, se algum dia historiadores do pós-futuro (aquele que não é agora, e se houver historiadores nesse futuro), forem vasculhar os arquivos cibernéticos, encontrarão, quase como uma jóia real, os relatos de uma completa anônima que viveu entre 1991 e algum dia que não sei dizer, detalhadamente narrados em tempo real dos acontecimentos por quase 12 (ou mais, porque não sei que dia morro) anos. Espero que esses historiadores se lembrem da micro-história, de Ginzburg, de Domenico. Encontrarão uma narrativa pouco envolvente, mas bastante afetada, sobre esses tempos.
Agora retomo - no ano de 2020 o futuro chegou para nós. O mundo agora está atento e consternado com a sua miséria. Os astros jamais poderiam ter sido tão certeiros na escolha deste ano, para ser o ano do apocalipse, porque sobre este ano de 2020 documentos podem ser facilmente adulterados (essa parte carrega uma grande suposição de que ainda existam pessoas interessadas em lê-los). O fato é que fomos acometidos pelo mal humano de continuar insistindo naquilo que nos mata, de forma cínica, algo parecido com fumantes. Neste ano, fomos submetidos ao maior equívoco da nossa própria arrogância, encurtar o tempo e espaço, dizimar todas as intransponíveis barreiras do existir. Alguns ingênuos cientistas chamam de globalização. Prefiro ruína.
Agora temos um panorama ficcional de dar inveja às mentes mais brilhantes do cinema e da literatura. À China, de nada serve a muralha. E desta vez nem o Coliseu soube dizer quanto tempo tem o mundo velho. Estão todos plenamente fodidos. Incontroláveis anedotas no mundo virtual nos animam no fim da festa, e aos trópicos é o que resta mesmo.
Teimam em dizer que somos descartáveis. Não é que do nada uma doença esteja contaminando o mundo todo e matando pessoas, não. É maior e mais potente. Do nada nos demos conta do inevitável frente à forma como fomos obrigados a nos reproduzir neste mundo. Nos demos conta de que nada faz sentido. Não há nada mais certo do que a falência dos homens que vivem como coisas. Nada mais certo de que a História não nos serve. Mas eu não quero parecer contraditória.
As capitais fecharam seus aeroportos, as ruas estão solitárias de seus carros, pois para eles foram feitas. As pessoas estão confusas, porque não existe exílio, e não existe lar. As cidades podem pensar em dispensar toda a parafernalha moderna que só acumula ferragem desnecessária. Os burocratas assinam papéis, como sempre fizeram. Os idiotas se abraçam em torno da desgraça e levantam suas bandeiras nacionais, que agora fazem menos sentido ainda. Os idiotas e os burocratas continuam com seus hábitos, porque não são produtos de coisa alguma e não servem pra nada na ordem das coisas.
Enfim, como estava dizendo, as cidades agora flutuam vazias em suas coisas, e parece que não existe gente. Os supermercados estão lá, cheios de enlatados, que em algum momento do fim do mundo vão servir para alimentar as baratas. Os bancos emitem dinheiro de papel com rostos de pessoas estranhas estampadas, que também não servem pra nada.
Os abraços foram suspensos por ordem maior, mas é como se não houvesse a necessidade disso. Nos tempos em que vivo, as pessoas só querem se abraçar agora porque é contra a lei.
E quase tudo se altera em forma e conteúdo, porque não fazemos mais sentido.
Em 2020 pessoas continuam a viver num mundo virtual, onde tempo e espaço não correspondem a nenhuma realidade possível. Elas se debatem, se espremem, se choram, se desesperam, tudo no simbólico, mas continuam operando suas vidas virtuais, só que agora sem a realidade editável com filtros simpáticos, que jogam luz de geladeira sobre suas caras.
As novelas foram suspensas.
Tudo parou, tudo está afetado, contaminado, sujo. Não há mais seres humanos vivendo suas vidas. É o fim do mundo, acabou.
Não há notícias, mas os trabalhadores continuam operando as máquinas, e ao que tudo indica, passam bem.