quarta-feira, 20 de maio de 2020

No buraco.

Foi assim que as baratas encontraram a forma perfeita para existir sendo quem são. Quantos milhares de anos, milhões até, forjaram sua casca brilhosa, marrom- escuro, seu tamanho pequeno, mas notável. Suas asas, por vezes, falhas, mas assustadoras. Sua inércia conveniente. Suas tocas na escuridão. Quantos milhões de anos foram necessários à barata, para que ela evoluísse para ser o que ela é.
Precisamos aprender com as baratas que não temos que ser grandes e venenosos para sermos imbatíveis. Nem límpidos, nem limpos. Podemos nos entocar. Podemos sair correndo quando as luzes acenderem. Podemos assustar com a nossa feiura simples. Não a barata de kafka. A barata do quarto, que perturba o sono. O que elas podem nos dizer depois da bomba de Hiroshima, ou Chernobyl?
Elas aprenderam a ser assim? Nem grande, nem venenosa. Só feia, pretensiosa e sacana.
Aprenderemos com as baratas, que vivem anos escondidas no buraco do batente da porta, e ali constrói seu império, e ali procria, e ali descansa.
Aprenderemos com as baratas.
As baratas, com suas cascas reluzentes, nos ensinarão sobre coragem.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

estado de utopia


Amanhecemos, todos os dias desde o novo, num desassossego atontado de alegria
Nunca haverá um depois novinho em folha, essa é a verdade
No entanto, as mariposas não são mais suicidas
Passamos a acreditar no adoecimento dos gansos selvagens
Hoje, depois de esperar os pequenos movimentos noturnos
Podemos enxergar o crescimento das plantas, no flagrante.
Com esses novos olhos que o novo mundo moldou
Nunca mais um menino morreu de fome ou de falta de sonho
Salvam-se os gansos, os meninos e as mariposas
Se não fosse assim, nos arrependeríamos de haver uma aurora
Os poetas e toda gente continuam seus trabalhamentos
E não é mais proibido pisar a grama, e nem criar expectativas.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

as vespas roubaram minha aurora

Já tinham nós avisado para reparar no mundo pequeno dos insetos. Agora, as vespas gigantes querem a justiça.
Como a angustia que chega por não sabermos se nossos esforços vão dar conta desse novo apocalipse que se apresenta. Embora estejamos ensaiando dias melhores, as vespas nos lembram que não podemos fazer surgir o outro dia assim. Um dia é um vislumbre de uma nova aurora, o outro é de vislumbre de um fim possível.
As vespas gigantes nos rondam, e podem arrancar nossas cabeças. Estamos atentos para ver em que momento do dia podemos abrir o novo ou velho.
Tristes. Estamos tristes. Nos arrepiamos pela sombra do presente. Estamos tristes e cansados. E fugimos das vespas, e fugimos do vírus e fugimos de nós.
Será que as vespas e os vírus acreditam em deus?

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Relatório sobre o abrimento da aurora

Ontem abrimos uma aurora. Não abrimos com pedra, ferro e aço.
Para sairmos do velho fim de mundo tivemos que obter conhecimentos outros. Após testes, constatamos que as ferramentas antigas não mais nos serviam. Os mesquinhos já não puderam aumentar suas panças para que pudéssemos sair desse fim de mundo.
Tivemos que nos atentar ao que diziam as bactérias (que se escondem no profundo oceano), pra saber como se esconderam no ato do naufrágio, até que tudo passasse. Além disso, não era mais possível consultar os manuais de salvamentos, e tivemos que buscar as diretrizes noutro lugar. Tivemos ainda, antes de sairmos do velho fim do mundo, que construir outro fim do mundo, e só então estávamos aptos pra um novo começo de mundo.
Descobrimos que: os melhores luscos-fuscos não se escondiam às nossas vistas; os abraços são dados usando todos os músculos, até os que movem as pestanas; as lagartas morrem quando nascem; os cachorros possuem melhores amigos que não são humanos; os gatos gostam de carinho demorado; os meninos sabem sonhar na rua; as mães se cansam; os pés sabem pisar a grama sem culpa e outros desconhecimentos que só o fim do mundo certo pôde nos proporcionar.
É certo, que em algum momento daquele fim de mundo, achávamos que não havia mais nada que pudesse ser feito para abrir um novo. E depois de tentarmos alicates, armas de fogo, lâmina de espada, força bruta, furadeiras gigantes e etc., só conseguimos fissurar a fina membrana que nos separava deste novo mundo, com a ferramenta dos poetas. Alguém, no meio da iminência obscura de um fim melancólico, se lembrou: podemos tentar com o abridor de amanhecer!
Estava lá, o hoje, do jeito que se criou. Quando a fissura foi se alargando, e começamos a espiar pela brecha o novo, todas as palavras tinham sido libertas para criar seu destino. Que alívio foi ver que toda gente sabe criar o mundo com palavra!
Hoje é o primeiro dia do novo, que ainda está sendo palavriado, e vendo como andam os processos, acredito que teremos sucesso. Nesse primeiro dia já inventamos uma palavra para designar a imagem de um anoitecer tranquilo. E também estamos trabalhando na palavra certa pra descrever o êxtase dos reencontros, mas ela virá. A dificuldade agora é inventar uma palavra que possa soterrar o velho normal e geminar o mundo com plantas alegrinhas. Cada coisa no seu tempo.
E sobre o tempo, toda gente está achando que as medidas antigas não servem mais. Estudando ensaios, nos foi útil a observação em perspectiva: as lesmas e as tartarugas são bem rápidas se comparadas a formação das rochas e ribanceiras, é um aspecto polêmico, mas poder ser útil. O ser humano vive uma eternidade quando contemporâneo às moscas. Mas as moscas vivem uma eternidade se comparadas aos vírus sem corpo. Mas em compensação, os vírus quando encontram um corpo, vivem uma eternidade se defronte à saudade. São estudos de tempo que agora, no primeiro dia do novo mundo, nos ajudam a criar réguas para as mudanças que estão porvir.
E como é importante saber a hora de interromper, por enquanto, os estudos que são inúteis aos mesquinhos, deixo aqui uma certeza escrita na areia eterna das praias que agora brilham mais do que anteontem - os trabalhamentos dos poetas surtiram efeito.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Aos poetas ruins, roteiristas e artistas plásticos - Convocatória de descriação urgente

Precisamos convocar urgentemente uma grande assembleia com todos os poetas do mundo, menos os que são úteis, os roteiristas de cinema, os artistas plásticos, porque não há mais tempo a perder, e é necessário descriar esse fim de mundo uníssono e já batido entre os humanos, que não tiveram a dádiva da ignorância.
Um bom fim de mundo que se preze não pode, jamais, deixar de considerar as senhoras com suas sacolas, transeuntes alegres, que gozam da, desconcertante, capacidade de ignorar os fins de mundo catastróficos. E como não considerar os homens velhos que arrastam suas barrigas pontudas, quase grávidos, para o conforto de todo o universo da praça? Um bom fim de mundo que se preze, não pode se contentar com as cidades vazias, porque essa ficção é, no limite, uma glória.
Convocaremos por setor, a saber: a) os poetas que não falam de amor, porque são inúteis então podem contribuir para criação de novas palavras para as disintereçâncias que um novo fim de mundo deve causar aos mais apegados; b) roteiristas de cinema que possam criar uma ficção que não obedeça à curva, cuja história não nos faça acreditar no melhor, mas também, que não nos deixe a própria sorte; c) artistas plásticos que, com toda a abstração necessária para se chegar na imagem errada, criem uma cenografia, onde participam do fim do mundo, os seres pequeninos, tais como: as formigas, as baratas, os maruins...aqui cabe a criação de uma cláusula: não serão permitidas em nenhuma hipótese cenográfica a aparição de mariposas, é certo que esse item fica confuso, mas exemplificarei: onde e como se escondem do novo fim do mundo as lêndeas? Como se comportarão as espadas-de-são-jorge que crescem em algum pedaço de chão? Também é certo, que no tocante aos comportamentos, setores A e C precisam trabalhar em conjunto.
É importante salientar aos poetas, por serem em essência seres ingênuos, que não será permitido o estabelecimento de imagens extremas. Entendam, o que estamos tentando fazer aqui é criar uma justa forma que caiba num novo fim de mundo - não se percam nas métricas! É estritamente necessário que cada setor entenda sua função de descriação, uma atividade muito minuciosa, que exigirá de todos o comprometimento proporcional. 
Um prazo deverá ser estipulado para a conclusão dos trabalhos, e aqui sugiro que pensemos nos critérios, e talvez, os parâmetros: a) nem tão rápido como o caminhar das lesmas, afinal temos pressa, e o novo fim do mundo precisa entrar em cartaz antes que se cumpram as profecias; b) nem tão devagar quanto o movimento das montanhas, tendo em vista que a cada translação uma pedra rola a ribanceira, e consequentemente, depois de muito tempo, criam penhascos e neles colocamos tudo a perder.
Como último ponto, por hora - é terminantemente proibida a crianção de consensos. 
Esperamos que com esses encaminhamentos as nossas descriações aumentem bem. 

Nota: para o bem desse delírio houve a necessidade de consultar o manual máximo de desconhecimentos - "Meu quintal é maior que o mundo: Antologia".