quarta-feira, 15 de julho de 2020

Cheia

Minhas narinas agora são impregnadas de todos os cheiros que o mundo produz. Nenhum cheiro me escapa. Não passo ilesa nem pelo perfume das borboletas crentes. Me sinto como um cão entediado, uma cadela entediada, na verdade, sejamos justas.
Eu não sinto mais prazer nos deleites corriqueiros, um vazio de bocas. Tudo é monótono e angustiante. Será que devo? Não devo. Não ouso.
Na verdade não existe poesia, nunca existiu. Não escrevo cartas para Simone ou Madalena. Não escrevo para ninguém - escrevo para ninguém.
O que acontece entre os dedos e as máquinas é a vida que não se resolve, e agora tenho narinas aguçadas demais para sorrir. Como posso sorrir se sinto o cheiro do plástico que estala quando pressiono as teclas? Como posso sorrir se o cheiro dos seus braços me dá vontade de morrer?
Eu não sorrio porque o meu sorriso cheira também. E não tem mais espaço para cheiro algum.
Ainda não sei dizer sobre a nova vida que tenho, ela existe. Preservemos os mistérios, o tempo não é mais o que define. Eu sinto o cheiro do tempo, desse tempo.
Estou literalmente cheia.