segunda-feira, 30 de março de 2020

Observações sobre a natureza doméstica


Barulhos perdoáveis

As mariposas não entendem seu destino. Se debatem contra luz, porque amam. Se elas ouvissem o que ouço, largariam esse relacionamento abusivo.

Safas

As plantas são as mais rápidas em saber das coisas. O dia passa, bem devagar, mas as plantas esticam ainda mais o tempo. Elas fogem do flagrante.

Ocupantes

As borboletas voltaram. Elas agora invadem minha casa, invadem a paisagem. Fiquei pensando se voltaram por causa da calmaria ingênua das ruas. Do silêncio, que agora é intenso. Ou se voltaram pra trazer um segredo, aquele sobre transformar-se.

Súbitos

Enquanto pensava uma carta de amor, ou de ressentimento, percebi, num repente, que escrevê-la seria completamente desnecessário. Sem nenhum sentido aparente, uma lesma deslizava lenta na parede diante dos meus olhos.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Lutos.

Vê. Não somos gentis.
Na ausência total de sentido pras coisas úteis, percebe-se um vazio imenso, que preenche todas as pequenezas que nos invadem na correnteza das coisas. A verdade é que partimos, inevitavelmente, de lugares distintos. A pequeneza das coisas se traduz em valor, negociável, de tempo e energia. A correnteza da vida não é sinuosa como a dos rios, ou melhor, ela foi, mas botaram cimento. A correnteza das coisas não nos permite, talvez, contrariando toda filosofia, ser diferente do que somos agora. Só os astros.
Todos os cadáveres estão na sala, fedendo.
Empacotando seus corpos, o que sobrou deles, eu choro, um por dia. Eu os choro agora, porque só agora posso fazê-lo. Mas tenho de fazê-lo.
A correnteza é implacável.
Embora os lutos venham, os dias de sol e incerteza, me acalmam. Porque não importa o que eu deixe de fazer. A calma invade e eu choro em paz.
Faço velórios silenciosos, que se confundem com as coisas do dia. Ninguém sabe, mas eu estou de luto. Rezo pelos mortos, e sei que agora eles podem viver tranquilos. Mas eles fedem. Eu acelero seus enterros, mas não quero chorá-los com pressa. Momento propício este, que me deixa chorar com calma.
Eu vou enterrá-los, todos. Para que eu possa encontrá-los em alguma parte sem constrangimentos.
Eu me comprometo com o futuro, a partir disso, quando ele vier.



quarta-feira, 18 de março de 2020

A História, que não serve pra nada, do fim do mundo.

O futuro chegou.
Ele não é como falavam os otimistas. Nem como falavam os pessimistas. O futuro pertence a quem não tem fé, nem piedade. O futuro chegou, e ele é pior do que nos filmes de ficção.
No ano de 2020...pausa aqui, essa parte é importante, porque é agora que faço uma ode a esse velho hábito, que, se algum dia historiadores do pós-futuro (aquele que não é agora, e se houver historiadores nesse futuro), forem vasculhar os arquivos cibernéticos, encontrarão, quase como uma jóia real, os relatos de uma completa anônima que viveu entre 1991 e algum dia que não sei dizer, detalhadamente narrados em tempo real dos acontecimentos por quase 12 (ou mais, porque não sei que dia morro) anos. Espero que esses historiadores se lembrem da micro-história, de Ginzburg, de Domenico. Encontrarão uma narrativa pouco envolvente, mas bastante afetada, sobre esses tempos.
Agora retomo - no ano de 2020 o futuro chegou para nós. O mundo agora está atento e consternado com a sua miséria. Os astros jamais poderiam ter sido tão certeiros na escolha deste ano, para ser o ano do apocalipse, porque sobre este ano de 2020 documentos podem ser facilmente adulterados (essa parte carrega uma grande suposição de que ainda existam pessoas interessadas em lê-los). O fato é que fomos acometidos pelo mal humano de continuar insistindo naquilo que nos mata, de forma cínica, algo parecido com fumantes. Neste ano, fomos submetidos ao maior equívoco da nossa própria arrogância, encurtar o tempo e espaço, dizimar todas as intransponíveis barreiras do existir. Alguns ingênuos cientistas chamam de globalização. Prefiro ruína.
Agora temos um panorama ficcional de dar inveja às mentes mais brilhantes do cinema e da literatura. À China, de nada serve a muralha. E desta vez nem o Coliseu soube dizer quanto tempo tem o mundo velho. Estão todos plenamente fodidos. Incontroláveis anedotas no mundo virtual nos animam no fim da festa, e aos trópicos é o que resta mesmo.
Teimam em dizer que somos descartáveis. Não é que do nada uma doença esteja contaminando o mundo todo e matando pessoas, não. É maior e mais potente. Do nada nos demos conta do inevitável frente à forma como fomos obrigados a nos reproduzir neste mundo. Nos demos conta de que nada faz sentido. Não há nada mais certo do que a falência dos homens que vivem como coisas. Nada mais certo de que a História não nos serve. Mas eu não quero parecer contraditória.
As capitais fecharam seus aeroportos, as ruas estão solitárias de seus carros, pois para eles foram feitas. As pessoas estão confusas, porque não existe exílio, e não existe lar. As cidades podem pensar em dispensar toda a parafernalha moderna que só acumula ferragem desnecessária. Os burocratas assinam papéis, como sempre fizeram. Os idiotas se abraçam em torno da desgraça e levantam suas bandeiras nacionais, que agora fazem menos sentido ainda. Os idiotas e os burocratas continuam com seus hábitos, porque não são produtos de coisa alguma e não servem pra nada na ordem das coisas.
Enfim, como estava dizendo, as cidades agora flutuam vazias em suas coisas, e parece que não existe gente. Os supermercados estão lá, cheios de enlatados, que em algum momento do fim do mundo vão servir para alimentar as baratas. Os bancos emitem dinheiro de papel com rostos de pessoas estranhas estampadas, que também não servem pra nada.
Os abraços foram suspensos por ordem maior, mas é como se não houvesse a necessidade disso. Nos tempos em que vivo, as pessoas só querem se abraçar agora porque é contra a lei.
E quase tudo se altera em forma e conteúdo, porque não fazemos mais sentido.
Em 2020 pessoas continuam a viver num mundo virtual, onde tempo e espaço não correspondem a nenhuma realidade possível. Elas se debatem, se espremem, se choram, se desesperam, tudo no simbólico, mas continuam operando suas vidas virtuais, só que agora sem a realidade editável com filtros simpáticos, que jogam luz de geladeira sobre suas caras.
As novelas foram suspensas.
Tudo parou, tudo está afetado, contaminado, sujo. Não há mais seres humanos vivendo suas vidas. É o fim do mundo, acabou.
Não há notícias, mas os trabalhadores continuam operando as máquinas, e ao que tudo indica, passam bem.